segunda-feira, dezembro 21, 2009

Aberração e Ostentação, duas achas para a grande fogueira católica

Caros activistas, contestatários e criadores compulsivos de petições, venho falar-vos a propósito da nova igreja paroquial de São Francisco Xavier, vulgo o mamarracho do arquitecto Troufa Real no Restelo. O grupo do Facebook “Não à construção da Igreja-Caravela” fala de “aberração em termos de estética e de conceito” e acrescenta que “de um ponto de vista católico é absurdo uma obra com esta ostentação.”

Ora, eu discordo totalmente. Se há conceitos que se aplicam na perfeição à imagem da Igreja Católica ao longo dos tempos são a aberração e a ostentação.

Quanto à aberração não é preciso procurar muito, temos milhares de livros, homens e principalmente mulheres que arderam na fogueira ao longo da Idade Média e não só (1). Temos um dos piores e mais longos climas de medo e denúncia já alguma vez instaurados, copyright da Santa Inquisição (segundo Justine Glass cerca de nove milhões de pessoas foram acusadas e mortas, entre os séculos que durou a perseguição). Temos um dos maiores genocídios da história, também conhecido por cruzadas ou guerra santa. Apenas a título exemplar, em 1099, quando os cruzados invadiram Jerusalém para expulsar os muçulmanos, foram massacradas 70 mil pessoas. O “body count” desta instituição implacável seria por si só suficiente para rechear o conceito de aberração católica, mas há outras especiarias colaterais que se podem juntar ao banquete sem sequer falar directamente em mortes. Temos a proibição da presença de mulheres nos coros das igrejas, facto que levou à castração de várias gerações de jovens rapazes para preencher os lugares de sopranos e contraltos. Temos a condenação de Galileu e do heliocentrismo que durou vários séculos. Temos a proibição da utilização do preservativo que terá originado milhões de doenças sexualmente transmissíveis, impossíveis de contabilizar. E, entre a oferta de aberrações, temos ainda a obrigatoriedade do celibato, regra directa ou indirectamente relacionada com milhões de casos de abusos sexuais, violações e pedofilia, que só muito recentemente começaram a chegar a lume.

Quanto à ostentação, tema caro à Igreja Católica, tem trespassado a arquitectura, indumentária, joalharia, estatuária e conduta do clero ao ponto de criar uma divisão entre a “igreja rica” e a “igreja pobre”. Curiosamente uma das melhores formas de entrar na história dos abusos da Igreja Católica é ler um livro de ficção: “O corpo da Igreja, que também foi durante séculos o corpo de toda a sociedade, o povo de Deus, tornou-se demasiado rico, e denso, e arrasta consigo as escórias de todos os países que atravessou, e perdeu a sua pureza própria” - in “O Nome da Rosa” de Umberto Eco

O personagem principal de O Nome da Rosa, Guilherme Baskerville, é um grande seguidor das teses de Marsílio de Pádua, teólogo que existiu na realidade e relacionava a corrupção da Igreja com o seu enriquecimento, defendia que esta não deveria ter propriedades, todos os seus bens deveriam reverter a favor do Estado e, Papa, bispos e padres deveriam todos ter o mesmo poder. Certo é que certas críticas surtem efeito, já que em pleno século XX foi abolido o transporte do Papa numa cadeirinha aos ombros da famosa guarda do Vaticano e Galileu recebeu um pedido formal de desculpas com cerca de 400 anos de atraso (os meus parabéns ao carteiro). Em compensação o Papa actual voltou a recuperar o calçado pontifico oficial: umas pantufas vermelhas. Mais do que uma ostentação, mau gosto.

Os detractores da Igreja de Troufa Real, levantam ainda as questões estética, urbanística e arquitectónica, mas o arquitecto amante de queijo Limiano tem razão: grandes obras contestadas no passado são hoje consideradas maravilhosas ou pelo menos passam desapercebidas. Lembram-se das polémicas em volta do Centro Cultural de Belém? E das obras do arquitecto Tomás Taveira?(2) Em relação aos contestatários d’O Forum Cidadania que chamam ao projecto "um empreendimento digno de Ceaucescu", mais uma vez vou ter de discordar, digno do falecido ditador romeno só mesmo o cemitério de Ghencea, em Bucareste. E quanto ao minarete que faz parte do projecto da igreja da polémica? Não poderia fazer mais sentido. Troufa Real, um homem que tem no topo das suas prioridades de vida “a prática do pensamento livre, tendo sempre como referência a religião católica e o ser humano” está mais uma vez a provar que tem a história em dia. O minarete simbolizará por certo os crimes arquitectónica perpetrados pela instituição católica, relembrando como inúmeras mesquitas foram destruídas ou transformadas em igrejas, tal como aconteceu na Sé de Lisboa ou na Mesquita de Córdova.

Coincidência ou intervenção divina, faz agora um mês a comunicação de Bento XVI sobre a responsabilidade dos artistas de “transmitirem a beleza autêntica, que leva ao coração humano o desejo profundo de conhecer, de amar, de ir ao encontro dos outros”, comunicação que o Papa decidiu fazer na Capela Sistina, local “precioso” onde Michelangelo deixou “uma das criações mais extraordinárias de toda a história da arte”. Acrescento então mais uma pergunta: alguém nos últimos tempos fez mais pelo desejo profundo de conhecer, de amar / odiar e de ir ao encontro dos outros do que o arquitecto da obra em questão?

Concluo assim, caros activistas, que a Igreja-Caravela é um perfeito lugar para a meditação e que, do ponto de vista católico não é um absurdo nem uma aberração, é uma obra-prima.


Ricardo Henriques - 21 de Dezembro de 2009 -

(1) Ironicamente, descobriu-se que o momento mais forte da histeria contra as bruxas ocorreu entre 1550 e 1650, juntamente com o nascimento da celebrada "Idade da Razão" - in Wikipédia.

(2) Até a sua obra maior, como videasta, está quase a cair no esquecimento.