Quatro da manhã do dia de finados, estou com o Sr. Nefasto na parte de trás de um carro da policia que acaba de fazer um troço da Rua Augusta em pleno passeio. No rádio JP Simões canta “Só quem saltasse o puro escuro poderia ver no muro o grande amor / E a cidade / Que venera novidades / Pôs-se às cegas por aí / E foi descambar / Bêbada / Na contramão”.
Não, não fomos apanhados com um copo a mais nem a atentar contra a moral pública. Talvez pior, talvez melhor. Voltando meia hora atrás, estou eu na Bica com demais personagens desta fábula e recebo um chamada. Depois de confirmações de identidade, dizem-me que têm ali à frente os meus documentos, ali na esquadra da Rua da Boavista, onde descobriram o meu cartão da agência com o respectivo nº de telemóvel. Lá me convenci que não era uma piada e desci até à esquadra, lembrando-me da última visão dos meus documentos, sossegados dentro da minha mala de tiracolo recém-comprada numa loja Desigual em Madrid, que por sua vez estava dentro da mala do carro, estacionado ali para os lados do Chiado.
Na mesa à frente de uma simpática mulher polícia, vejo as minhas chaves de casa, um pequeno caderno onde costumo guardar o B.I., carta e papéis de rebuçados, e a minha caixa de óculos de ver, comprada no chinês, com óculos e tudo. Uma rapariga, também assaltada, tinha-os levado até lá.
Entretanto chegam os dois policias de giro que nos guiam até à Rua do Ferragial, onde, pelos vistos, vários carros tinham sido assaltados.
Chegamos ao local do crime e, entre o carro e o passeio, descubro a bolsa onde o meu pai guardava o cachimbo quando fumava e eu costumava esconder o iPod, essa peça com 6 Giga de músicas e alguns trabalhos lá dentro que dava tanto jeito não ir parar a mãos alheias. A porta do lado do lugar do morto está dobrada em cima como papel de pouca gramagem, lá dentro o painel frontal do rádio desprezado em cima do banco. Um dos policias comenta resignado “Ah, isto deve ter sido o Cláudio! É o modus operandi dele e saiu há pouco tempo da prisão.” Fiquei com cara de parvo a olhar para ele, não sei se pela naturalidade do comentário ou por ouvir um policia a utilizar uma expressão em latim.
Abri a mala e, claro, tinha ficado tudo para trás, preciosidades como uma embalagem de óleo do carro, um limpa pára-brisas velho, cadernos de apontamentos de trabalho, tudo ali, menos a minha mala nova, o iPod e os meus óculos escuros Ray-Ban. Os policias não chamaram helicópteros, não calçaram luvas de borracha, não isolaram o perímetro, nem sequer tiraram impressões digitais, aconselharam a fazer uma participação e fizeram a piada “Agora a sua namorada nunca mais lhe empresta o carro”. Pois.
Então, fechei o carro e com o Sr. Nefasto pusemo-nos à procura de outros possíveis frutos do furto inadvertidamente caídos no chão. Procurámos do Museu do Chiado até ao Tóquio, onde ainda tentámos entrar, mas já estava fechado. De volta à Rua do Ferragial ainda farejei mais um bocadinho até que pára um carro ao meu lado cheio de pessoas e o condutor projecta a voz cá para fora “Pois, roubaram os carros todos aqui, não foi!? Uma rapariga que chegou mais cedo viu tudo assaltado!” Então aproximo-me do carro e respondo “sim, assaltaram o meu e fiquei sem um iPod e uns óculos Ray-Ban.” Um rapaz do banco de trás estende-me uma caixa de óculos que abro rapidamente e onde descubro os meus óculos imaculados. Ia entregá-los agora à policia. Obrigado, disse incrédulo, obrigado. Obrigado colega furtada. obrigado Cláudio por me teres deixado os óculos, os documentos e as chaves de casa, obrigado por não teres partido o vidro nem levado o carro para fazer um assalto a um banco, obrigado por me dares mais uma razão para ir de transportes para o bairro e me incentivares a comprar um iPod novo. Vejo-me obrigado a isto tudo.
No meio da nossa busca ao perímetro o Sr. Nefasto tirou-me uma fotografia postada mais abaixo onde eu tiro 2 fotografias a uma rede de obra com néons.
Duas fotos talvez candidatas a moral desta fábula bêbada - “O trabalho de uns é a guerra de outros.”
quinta-feira, novembro 08, 2007
Amigo Alheio
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1 comentário:
E uma nova ida a Madrid? Lá terá de ser.
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