segunda-feira, setembro 11, 2006

“Volver”


Almodóvar voltou ao cinema, à sua infância em La Mancha, às suas actrizes e à sua cenografia enraizada, rica em padrões coloridos e calorosos, seja no genérico, nos vestidos, nas batas, nas cortinas ou no papel de parede.
Almodóvar voltou a mostrar o seu humor de costumes e obriga-nos a rir com as carpideiras e os rituais do culto dos mortos. Este é um cinema que quer cimentar a sua própria mitologia e procura inspiração directa na época de ouro do cinema italiano. Um garimpo rápido prova-o facilmente. A galeria de mães, cantoras, traídas, traidoras, putas e filhas almodovorianas não pode ignorar a galeria felliniana; a imagem de Penélope Cruz nunca foi tão sensual, tão generosa nos enchumaços, tão decotada, tão Sophia Loren (veja-se a Sophia de Ieri, Oggi, Domani di Vittorio De Sica); e Almodóvar chega mesmo a dar-nos de bandeja um paralelismo italiano ao mostrar-nos uma mãe extremista (a pirómana Cármen Maura) que vê na televisão um filme com uma mãe extremosa, Anna Magnani no filme “Bellísima” de Visconti. Em ambos os filmes, as mães quiseram introduzir as filhas no mundo do espectáculo.
Almodóvar oferece-nos este paradoxo: em “Volver” vemos a vida como ela é, mas ao mesmo tempo vemos uma ambição de cristalização numa mitologia cinematográfica que vampiriza o próprio cinema.

5 comentários:

Sr. Nefasto disse...

Andamos tão infelizmente desencontrados, caro sócio.
A ver se descobrimos uma coincidência de agendas que permita uma assembleia geral para afinar estratégias.

Apenas acrescentar uma história ao seu belo texto:
Este domingo, estando eu em espera para comprar os bilhetes para Volver e em estado de surpresa e enfado por o cinema estar invulgarmente congestionado para uma noite de domingo, vejo sem mais nem menos passar por mim o motivo de tamanho amotinamento: Juliette Binoche a caminho da antestreia do seu filme.

Carregada de lantejoulas brancas, prateadas e verdes. Com decote e estola de peles polares.
Digna da melhor cena kitch de Almodôvar, rodeada de gente em havaianas de fim-de-verão.
Uma aparição que não era deste mundo, nem do mundo nova-iorquino de Allen ou do mundo de uma península ibéria sulista de Almodôvar.

Antes de um mundo onde o brilho ofusca demasiado, não deixando espaço para ver o que se esconde por baixo.

Anónimo disse...

Que venham as comparações, as repetições, o "volver" das personagem almodovorianas se no fim saí estranhamente resignada com o mundo.
Ou será uma desculpa?!

Anónimo disse...

Não vi o Volver (ainda) mas preciso deste espaço para pedir a insurrecção de todos os fãs de cinema de domingo à noite.
Não sei o que se passa, se serão as férias grandes ou uma súbite necessidade cinéfila que atingiu os lisboetas de forma fisiológica, mas a verdade é que todas as minhas noites dominicais têm vindo a ser estragadas por companhia indesejada nas salas.
E sim, eu sei que existem salas que não têm quase ninguém, mas não abdico do conforto do corte inglés para ver filmes normais nem da mística do monumental para ver algo diferente.
E não, não vou às twin towers, acho aquele intervalo verdadeiramente funesto.

Anónimo disse...

SENHOR FUNESTO!!!

de repente, parece um clone da nossa amiga kathleen. veja lá se não envereda por desertos de neve...

O Despachante disse...

"Deserto de neve" esse clássico instantâneo da crítica exacerbada e inflamada...

Falta-me muito para chegar aí. :)