Eu nunca tinha visto o Sérgio. Quer dizer, já o tinha visto pelo menos uma vez na rua, ali ao pé do paquistanês da rua da imprensa nacional e ainda este Verão o vi perto de Tavira, em Cacela Velha, no mesmo restaurante que eu. Mas nunca o tinha ouvido ao vivo. Estive quase, num dos Sudoestes, mas só o apanhei a dizer "Olha a Lua tão bonita lá no alto". Uma outra vez, há cerca de uns dez anos atrás, ia vê-lo finalmente num festival qualquer da semana académica em Algés. Só que, depois de uma prova temerária com o nome de "álcool challenge" que implicava beber 5 shots indescritíveis (um deles era o TGV) e o precedente troféu de dois copos gigantes de cerveja, pouco deu para ver, ouvir, cheirar, andar ou sentir.
Delirámos com o Flak a solo, competimos com o grau de embriaguez do Jorge Palma e na altura do Sérgio já estávamos a revelar o que nos ia no interior em plena viagem de Táxi. Continuava falhada a minha missão de finalmente ver o Sérgio. Eu, que apesar de não ser o fã número 1, achava que o único defeito duma amiga era não gostar do Sérgio, eu que pintei em letras garrafais, numa garagem em frente à Cornucópia, "O PAÇADO É UM PAÍS DISTANTE", assim mesmo com erro, porque todos os escritos murais têm de ter um erro, eu, que dou por mim a cantar "desce as escadas quatro a quatro" sem dar por ela, eu que tive uma educação de esquerda e tão anti-ditadura quanto algumas letras do sérgio, eu que acho estas palavras:
"A noite passada acordei com o teu beijo / descias o Douro e eu fui esperar-te ao Tejo / vinhas numa barca que não vi passar
corri pela margem até à beira do mar / até que te vi num castelo de areia / cantavas "sou gaivota e fui sereia" / ri-me de ti "então porque não voas?" / e então tu olhaste / depois sorriste /abriste a janela e voaste"
das mais bonitas que já se escreveram na língua daquele poeta que se meteu numa rixa no beco do tronco. Eu que reconheço no Sérgio a genialidade de resumir a vida da maior parte dos membros da raça humana na frase "à espera do comboio na paragem do autocarro". Eu enfim, parvo, só a semana passada, graças aos concertos do Casino do Estoril (quem diria que seria ali no antro do jogo e do capital!) vi, ouvi e senti pela primeira vez o Sérgio Godinho.
E então senti a magnitude do cantautor que já não precisa de cantar. Todo o público cantava, surpreendentemente afinado, por ele. Senti a constante renovação musical das boas velhas e actuais palavras, com bons músicos a fazerem de cada música ao vivo uma experiência renovada, inclusive com batidas criadas por uma máquina de escrever.
No final não me surpreendeu, pelo contrário, confortou-me saber que aconteceu como imaginara. Depois vieram dois encores. E na última canção, só ele, a guitarra e a ironia, acabou assim:
"ainda bem que voltaste".
terça-feira, setembro 02, 2008
Olhar, sorrir e voltar
Postado por O Despachante às 4:34 da tarde
Marcadores: concerto, música, sérgio godinho
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4 comentários:
e, de longe, a minha identificação maior:
E a rapariga / desce as escadas quatro-a-quatro / vai vender mágoas / ao desbarato / vai vender / juras falsas / amarguras / ilusões / trapos e cacos e contradições... /
e quase, quase me torno comunista com o
Que força é essa / que força é essa / que trazes nos braços? / que só te serve para obedecer / que só te manda obedecer / que força é essa, amigo? / que força é essa amigo? / que te põe de bem com os outros e de mal contigo?
grande sérgio. ainda bem que o sentiste tão bem.
Ainda hoje de manhã passei pela feira da ladra, a caminho de Linda-a-Velha, a acelerar ao desbarato, com vontade de parar e comprar uma contradição.
Sr, Nefasto só posso acrescentar que sou fã do Sérgio desde que ele voltou para Portugal e logo se mostrou diferente, principalmente nas letras que só ele conseguia meter nas músicas. Há uns tempos encontei-o na Casa Fernando Pessoa e ele estava apenas na assistência como eu e disse-lhe que o admirava imenso, que sabia de cor várias canções e que embora o considerasse original era como o Chico Buarque português. Ele agradeceu com aquela boca à Jacques Brel e eu senti-me estúpida por fazer comparações.
Belo texto. Que seria se fosses fã!
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