Era uma vez um cozinheira velha, muito velha. E ruim, má como as cobras.
Coxeava da perna esquerda, arrastava o pé esquerdo.
Direito, shummm, direito, shummmm.
Nasceu em noite de trovoada, as tias queimavam alecrim à luz dos relâmpagos.
Pais-nossos e avé-marias. Alecrim queimado. Pais-nossos e avé marias.
A mãe esvaiu-se em sangue até à ultima gota, crucifixo gigante pendurado na parede caiada de branco sujo. Filha bastarda do senhor da terra, o grandessíssimo filho-da-puta-que-o-pariu.
Vemos-nos no inferno, diabos o carreguem.
- Não praguejes, filho, que o Senhor não gosta.
Cozinheira de cabelos brancos, sobrancelhas brancas, cara lavada, desinfectada, limpa, pouca vergonha. Alimenta a vida, cozinha o pão que o diabo amassou.
Sofre na pele tudo o pode ser de pior.
Ruim.ruim. Descasca batatas como quem coze a vida em banho-maria.
Reza a Deus. Copo de vidro sobre o pano de algodão cru. Sobre a cabeça. Reza.
Tira o sol da cabeça. A água ferve. Nógados pelo natal.
O pai morreu na guerra. Aquela guerra d'áfrica. Ultramarina. Guarda Nacional Republicana. Fotografia a preto-e-branco semi-desfocada. Blur pré-moderno. Austero, o senhor guarda. Destila veneno. Víbora. Má como as cobras. Devia dizer-lhe vergonhas.
O irmão sozinho. Cresce sabe-se lá como. Solitário esvai-se em sangue na terra. Essa terra esquecida até da guerra. Quem quer guerrear em terra de pão?
A irmã tem filhos, a parideira. Uns melhores, outros piores como ao Senhor aprouver.
Sozinha faz o seu guisado. Tem um filho. Um, único, para queimar a lume brando.
Para ele ter um filho, único, para queimar a fogo lento.
Touca branca, imaculada. Ou era um lenço preto? Apertado. Justo à cabeça?
Como é possível tanta desolação. E vazio. E nada deste mundo sobrevive.
Cozinha, alimenta o lume da cozinha dos outros, alimenta-os, envenena-os até ao tutano.
Senta-se ao sol da tarde do sul. No banco esquerdo. Borda botinhas de lã para crianças tão vazias que nascem sem o saber. Banheira de plástico creme. Beije. Cor de merda como dizia o outro. A criança gorducha esperneia porque não gosta de banho. Não grama a água nem quente nem fria. Nem com molho de tomate, tão bom. Mau como as cobras, também. Filho da sua avó.
Cozinheira velha, ruim. Amo-a como minha.
A colcha de renda já vai grande. Feita no banco esquerdo. Feita pela mão esquerda.
Para estrear à mesa de jantar. No dia do Jantar. No dia do Senhor. Louvado seja.
Um dia a cozinheira velha vai morrer, deixar o raio do banco esquerdo vazio.
Para o herdeiro.
Um dia a cozinheira termina de coser a sua colcha interminável
e o herdeiro vai ter que a estrear na sua mesa de jantar. Vazia, seguramente.
Vazio ele, que saiu da sua mãe duas vezes.
Um dia a cozinheira velha morre e os seus filhos, uma vez e duas vezes ficam orfãos.
Velha mejera que tens o sangue todo. Secas o sol que te alumia. Secas o fruto do teu ventre.
Amo-te como minha.
terça-feira, março 18, 2008
banco esquerdo
Postado por Sr. Nefasto às 4:05 da manhã
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
sem palavras, não 4. amei. posso publicar-te?
Enviar um comentário