segunda-feira, novembro 14, 2005

Cristo-Rei e Desporto Rei

trupe

Eu já sabia que Fátima e Futebol nutriam entre si uma ligação quase de irmãos, mas estes últimos dias transformaram-se numa constatação demasiado óbvia desta fraternal realidade. Por toda a cidade me deparei com milhares de adeptos da Nova Evangelização de colorido cachecol ao pescoço. Eles invadiram todos os locais usualmente libertos de fiéis espaventosos. Na Cinemateca, enquanto esperava pelo filme Às Portas do Céu de Michael Cimino, filme muito pouco católico, muito pouco ortodoxo e muito, muito longo, fui atropelado por dezenas de devotos, na sua maioria freiras e senhoras de idade respeitável e casacos conservados pela naftalina que se apressavam para ver o filme Thérèse de Alain Cavalier, filme inserido no ciclo A Pessoa de Jesus Cristo no Cinema. Nos pastéis de Belém, mesmo ao lado dos Jerónimos, onde se realizou o Congresso Internacional para a Nova Evangelização, foi difícil descobrir uma pessoa sem aquela peça de indumentária tão semelhante a uma versão V.I.P. do cachecol do Benfica. Entre duas dentadas no meu pastel ainda captei excertos de histórias de sacristia (por receio de retaliações da Opus Dei não vou revelar pormenore).
Não andei de Metro nestes dias dias, mas quase que aposto que a facção mais extremista dos evangelizados (uma qualquer No Name Nuns?) terá entoado cânticos celestiais no subsolo para apavorar agnósticos e sócios do ateísmo.

"Na tarde de sábado, dia 12, a imagem de Nossa Senhora de Fátima, vinda da Capelinha das Aparições, percorre as ruas da cidade de Lisboa. Milhares de fiéis são aguardados nesta Procissão da Luz."

Quem por acaso decidiu ir ao Cinema Monumental, sábado passado, fim da tarde, só chegou à sala por milagre. Saldanha, Avenida da República, Avenida da Liberdade, Marquês de Pombal, Restauradores, estava tudo vedado a carros que não trouxessem às costas uma estátua da Virgem, a tal que não saia de Fátima há 43 anos, quando veio assistir à inauguração de uma estátua amiga, a do cristo-rei. Lembrei-me claro, de Figo, Pauleta, Ricardo, Nuno Gomes e restantes símbolos nacionais a passearem de autocarro ente vivas do povo.

Atenção! Este post não foi escrito em tom de lamentação, mas tão-só de espanto. Oooh, cruz credo! Olha que engraçado!

2 comentários:

Elipse disse...

Espantação partilhada.
Eu, ateia, me confesso e pecadora sou...graças a deus!!!

Sr. Nefasto disse...

Ontem escrevi uma carta à antiga, com caneta de aparo sobre papel branco, para um antigo professor. Uma das pessoas mais teimosas que já caminharam sob o sol, que não tem telemóvel nem email. E lê a correspondência unicamente aos sábados de manhã.
Esse meu antigo professor é um homem de fé. Já tentei, e tento volta e meia ser também, mas não, nunca me calha.
É uma espécie de cristão primitivo, pré-igreja romana. Tem também uma teoria muito interessante sobre as relações entre a geografia de Portugal e o devir do homem ocidental. Existe, uma diferença enorme entre a fé do medo, da ignorância e do adestramento e a fé da cultura, daquilo que poderíamos chamar de fé da transcendência.
Parece-me que estes últimos crentes, são como os antigos artistas árabes, andam laboriosamente a encontrar relações, justificações para arrumar e dar sentido ao mundo. Um trabalho diligente, de grande complexidade intelectual, o da geometria e métrica metafísica.
Os ateus existencialistas optamos por um outro caminho, mais duro e árido quando consciente. Procuramos todos os dias a beleza das coisas, mas parando sempre nesse ponto. Nunca dando o passo seguinte, nunca fazendo a relação entre a coisa concreta e uma causa superior.
Desiludidos, diriam os orientais.